
O paraíso terrestre descubri-o eu, ao virar da esquina da triavilidade diária de tarefas e afazeres, usurpando-me a estática atenção, quase amovível, enquanto fixava o cesto, de aspecto tão insosso que dava pena: uma embalagem de champô 2 em 1, uma pasta de dentes branqueadora com oferta de escova, um saquinho de papel com 2 pães integrais, 1 Kg de maçãs Golden, 2 iogurtes de vidro com pedaços de morango, pastilhas elásticas sem açúcar, um pacote de chá de menta e uma embalagem daquelas rodelas de arroz tufado que não sabem mesmo a nada e que, por isso mesmo, acabam sempre por andar meses perdidas no fundo do armário até que alguém tenha a bondade de as comer para não deitar fora . Deve-me ter passado pela cabeça algo como "Andas-te agora a armar em saudavelzinha, e tens a mania que acreditas piamente que se trata de uma nova opção de vida." A fila não andava nem desandava, o que se começava a revelar crítico para a minha já de si precária estabilidade nervosa. Eu tenho sempre o condão de acertar nas filas que ancravam à laia de um artigo cujo código não vem descriminado, ou de um qualquer chico esperto que se julga no direito de passar pela caixa registadora sem ter previamente pesado o saquinho do feijão verde ou o pacote de cenouras que já vinha mesmo embalado não é? Para quê pesar? Só não acerto no Euromilhões, é uma pena.
Ali ao lado um pequeno ser de duas pernas inquietas e dois braços em dança frenética gritava na tentativa de que a voz chegasse ao 2º piso : "Oh mãe .... MÃE ... tá na hora dos Morangos com Açúcar ..." Como se a mãe se detivesse com mais interesse no folhear da Tv Mais ou da Caras ou do que raios aquilo era (eu só leio a Super Interessante, a Viagens quando por engano o carteiro a deixa duas caixas de correio ao lado da correcta, e a Elle ou a Vogue, independentemente de oferecem carteiras douradas ou prateadas de qualidade muito duvidosa), a criança pré-adolescente a quem o alargamento das ancas e o desenvolvimento peitoral devem estar quase, quase a dar as primeiras dores de cabeça ,volta à carga: " Oh mãaaaaaeeeee ... vamos embora que já começou a dar os Morangos ...". Começei eu a relembrar os meus tempos de criança, e dos desenhos animados que marcaram os meus idos anos 80: a Heidi e o Marco a rebolarem alegre e ingenuamente pelos montes austríacos abaixo, o Calimero e a Abelha Maia (que deram origem a uma música de conteúdo ordinário baseada numa hipotética e nunca comprovada relação de elevada tensão sexual entre os 2), os Ursinhos Carinhosos que, ainda que meio amaricados, me prendiam horas ao pequeno ecrã, fascinada com a salganhada tuti-fruti multicolor que nos levava a crer que podíamos ser e viver tal como eles (chama-se a isso lavagem cerebral cromática. Era cor a mais e uma criança ficava, naturalmente, muito confusa). E o que eu aprendi com o senhor barbudo de túnica branca da série "Era uma vez no espaço", ou "Era uma vez o corpo humano". Acredito mesmo que a série foi decisiva na minha escolha profissional, já que astronauta não é mesmo para todos. Imortalizadas ficaram as músicas do Popeye The Sailorman, ou da Pantera cor-de-rosa, que era o bicho com ar mais cool que eu conhecia. Naquela altura, quando fosse grande, também eu queria ter uma cauda adorável como a dela, ser peluda e cor-de-rosa(com muita pena minha nenhuma se concretizou, já conheci gente assim, mas nem todos podemos ter sorte na vida). E o regozijo que era quando o Tintim passava na RTP, viver as aventuras ao lado do Milu ou dos gémeos Dupond & Dupond. Mais tarde veio a loucura espacial dos Jetsons, ou o desvairio pré-histórico dos Flinstones, as mil e uma artimanhas do Inspector Gadjet e a iniciação a uma das minhas maiores paixões cinematográficas: Tim Burton, ou o despautério deliciosamente mórbido de Beetlejuice. E tantos mais espalhados ao longo do caminho.
Animada pelas memórias que me deixaram com um sorriso ridículo (e algo doentio) na cara na fila de supermercado do Jumbo, dei conta, para grande alívio, que a fila recomeçara a andar e afinal o iogurte líquido era mesmo oferta na compra do pack de 4 iogurtes de aromas, e não, o senhor não estava a tentar roubar nada nem ninguém, e a sua versão estava correcta desde o início. Pensei eu que em 10 minutos podia ter feito coisas muito mais interessantes, e que tinha acabado de perder 10 minutos da minha vida que jamais iriam voltar. Pouco menos de meio metro abaixo de mim, a criança quase que chorava de tanta angústia, e a voz já débil resistia porém num último pedido de ajuda: "Oh mãaaaaaeee... os Morangos mãe ... já não vou ver os Morangos por tua culpa, não falo mais contigo, és má, não gosto de ti, a culpa é toda tua". Por estas alturas já eu retirava os meus artigos do cestinho e os ajeitava cuidadosamente o mais próximo possível das compras do jovem da frente, na esperança de que tal me levasse a ser mais rapidamente atendida. Animada também pela boa nova de que o fim estava próximo, a senhora fecha a revista e, na tentativa de apaziguar a filha já sem forças e derrotada em campo de batalha, diz: "Deixa lá filha, logo sentas-te com a mãe depois do jornal a ver a Floribela".
É neste ponto, como futura profissional de saúde e, quem sabe, madrinha de crisma de alguém, que me começo seriamente a preocupar com o futuro das nossas crianças.
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